[Eu e Ferreira Gullar em 24/11/2010, premiação do Projeto Poesia na Escola, Rio – uma cidade de leitores]
Ferreira Gullar – Narciso e Narciso
Se Narciso se encontra com Narciso
e um deles finge
que ao outro admira
(para sentir-se admirado),
o outro
pela mesma razão finge também
e ambos acreditam na mentira.Para Narciso
o olhar do outro, a voz
do outro, o corpo
é sempre o espelho
em que ele a própria imagem mira.
E se o outro é
como ele
outro Narciso,
é espelho contra espelho:
o olhar que mira
reflete o que o admira
num jogo multiplicado em que a mentira
de Narciso a Narciso
inventa o paraíso.
E se amam mentindo
no fingimento que é necessidade
e assim
mais verdadeiro que a verdade.Mas exige, o amor fingido,
ser sincero
o amor que como ele
é fingimento.
E fingem mais
os dois
com o mesmo esmero
com mais e mais cuidado
– e a mentira se torna desespero.
Assim amam-se agora
se odiando.O espelho
embaciado,
já Narciso em Narciso não se mira:
se torturam
se ferem
não se largam
que o inferno de Narciso
é ver que o admiravam de mentira.
* Do livro: Barulhos.
OVNI
Sou uma coisa entre coisas
O espelho me reflete
Eu (meus
olhos)
reflito o espelho
Se me afasto um passo
o espelho me esquece:
— reflete a parede
a janela aberta.
Eu guardo o espelho
o espelho não me guarda
(eu guardo o espelho
a janela a parede
rosa
eu guardo a mim mesmo
refletido nele):
sou possivelmente
uma coisa onde o tempo
deu defeito
Narcisista
outra mais forte achou. Enquanto bebia,
viu-se na água e ficou embevecido com a própria imagem. (Ovídio, “Metamorfoses”)
sem me perder?
O reflexo não me explica,
apenas me consome
e me prende.Uno-me tanto a mim
que meus átomos se juntam
ao meu reflexo.
eu sou aquele
no espectro que me devora.Quando me perco,
é quando me encontro.